sexta-feira, 30 de dezembro de 2011

Escrever é enganar o tempo

Voltar é o último momento da viagem e gosto de o fazer lentamente. Tanto tempo fora, exige cuidados no regresso…. Não se pode regressar de supetão! Podemos não aguentar a emoção. Os golpes de vento, o frio.

Por cá, aparentemente, tudo está na mesma… No entanto nas muitas casas onde habito, as mulheres estão todas mais maduras e nas aldeias, o feminino que sempre foi o suporte das casas, pouco a pouco sai e ganha as ruas. É lenta esta mudança. Ninguém as vê, mas elas lá estão resistentes e na base da estrutura das pequenas comunidades. Entre muitas outras coisas, cuidam dos netos. Algumas contam, algumas cantam. Algumas lêem livros.
Na Trindade vive uma destas mulheres. Uma mulher leitora. Não sei muito sobre ela, mas sei que só ela conhece O LIVRO quase de cor. Herdou-o do pai, todo escrito a recortada caligrafia. O LIVRO a partir do qual ensaia o presépio da Trindade enquanto aqui lê um pedacinho da loa, ali canta a cantiga da cigana que ia adorar o menino, de vez enquanto lamenta, não ter mais gente a ajudar a fazer o Presépio, não ter um tocador.

Este auto de Natal, tão antigo, onde só entravam homens, hoje quase não os tem. Fazia-se na véspera de Natal, na rua, no largo. Fogueiras todas em volta e entrava a Loa. A aldeia enchia-se de povo preparado para escutar uma noite inteira e todos sabiam que graças a ele teriam o necessário para o almoço de Natal.

O LIVRO jaz sobre a mesa, envelhecido. Apenas ela é capaz de o tornar vivo quando o conta. Diz o livro, servindo de ponto e de modelo. Ela sabe qual é a cadência certa, o LIVRO não.
O livro não conta como tudo se fazia, não conta que as vestes eram feitas de saca e pano de camisa… Sem ela O LIVRO é letra morta. São as pessoas que dão sentido aos livros. Diria mesmo mais são as pessoas que dão sentido aos objectos culturais.

As viagens à memória são sempre instrutivas. Obrigam-nos a recordar o que fomos e a perceber que temos de olhar melhor para o que acontece perto de nós, como o auto de Natal da Trindade e tantos outros. Não por ser moda, mas porque o que ali vai acontece - dia 6 de Janeiro - O Presépio, nos diferencia e apesar de todas as crises, persiste. Resiste.

A afirmação de cada país, cidade, organização, de cada pessoa, constrói-se da sua capacidade de construir compromissos, entre deveres e direitos, entre responsabilidade e liberdade entre a produção e o lucro, entre tradição e contemporaneidade, mas sempre em torno das pessoas. As pessoas são sempre a solução, nunca o problema.

A afirmação de um mundo mais MUNDO, passará sempre pelo compromisso que permita que cada um de nós esteja individualmente melhor, porque todos vivemos melhor e mais inteiros. Estes são os meus votos para o ano que agora começa!
( in :Diário do Alentejo , Dez,2011.

quarta-feira, 28 de dezembro de 2011

AS INGENUIDADES ... do ministro

Emigrem !
Disse por outras palavras,
o primeiro ministro do pequeno pais,
Todos escutaram
ESPANTADOS com a ingenuidade:
ter dito em voz alta
o que já corriam pelos corredores,
pelas ruas e praças,
em murmúrio.

Quando o Ministro falou para os professores,
todos o ouviram.
Os professores e também
os filhos dos professores,
os pais dos professores,
os irmãos dos professores,
s pais dos alunos dos professores
os alunos dos professores
e as televisões apliaram

Todos escutaram e
seguindo o paternal conselho
desse ministro primeiro,
EMIGRARAM !

Aos poucos foram saindo ...
Professores e engenheiros
médicos e enfermeiros
pequenos e grandes ladrões.

Aos poucos foram saindo
arquitectos, proxenetas,
operários e carteiristas
empresários e escritores
industriais e solistas.
Putas, músicos, cantores
Cozinheiros, cientistas
informáticos,pedreiros
Bibliotecários, taxistas
Todos emigraram ...

Aos poucos emigraram, até aqueles
que nunca teriam pensado em emigrar.

E o primeiro ministro ficou.
Sozinho.
No pequeno país.
Miseravelmente vazio.
Pobre.
Despojado da sua única riqueza:
as pessoas que o poderiam um dia transformar.

terça-feira, 27 de dezembro de 2011

AS HERANÇAS



memória, identidade, paixão, resiliência - que de tudo isto se faça o ano que aí vem.

segunda-feira, 26 de dezembro de 2011

UMA MULHER ; UM LIVRO ; UM LUGAR

Regressar é o último momento das viagens. Contar dos trilhos percorridos e as histórias das pessoas que agora nos habitam. Regresso hoje à minha condição de funcionária pública, para trazer novas da viagem...

Existe um lugar pertinho daqui onde vive a mulher do LIVRO. É uma mulher madura que recebeu O LIVRO do seu pai, que também o tinha recebido de seu pai, que por sua vez também o tinha recebido…até à origem do livro, da autoria. Esta perde-se no escuro dos Natais de todos os tempos.

Direi o nome do Lugar mas, da Mulher, apenas revelareique sabe O LIVRO de cor e o entoa na cadência certa, sempre que entra a Loa.

Contarei o que ela me contou: que o auto se fazia nas vésperas de Natal e durava uma noite inteira. Fogueiras em roda e o povo batendo o pé e o queixo, assistindo ao Presépio. Havia quem tocasse gaita, quem tratasse dos cenários e figurinos
feitos de saca…todos sabiam que graças ao auto haveria ceia de Natal. Os textos extensos eram aprendidos por mais de uma dezena de homens na integra. Ditos de memória, sem engano por quem tantas vezes não conhecia uma letra tamanho de uma casa. Suponho que desconheceriam muitas das palavras que diziam, mas sabiam o que contava a história e como ela os ajudava a acreditar!

Pois esse auto de Natal – ainda resiste. Persiste.
Aqui no Alentejo, pertinho de Beja.
Numa pequena aldeia que vai deixar de ser freguesia.
Na Trindade, no dia de Reis.
Há seis anos que não se fazia.

domingo, 20 de fevereiro de 2011

Das Vantagens de Ser Bobo - Clarice Lispector

DAS VANTAGENS DE SER BOBO
Clarice Lispector 1970

-O bobo, por não se ocupar com ambições, tem tempo para ver, ouvir e tocar no mundo.
-O bobo é capaz de ficar sentado quase sem se mexer por duas horas. Se perguntado por que não faz alguma coisa, responde: "Estou fazendo. Estou pensando."
-Ser bobo às vezes oferece um mundo de saída porque os espertos só se lembram de sair por meio da esperteza, e o bobo tem originalidade, espontaneamente lhe vem a idéia.
-O bobo tem oportunidade de ver coisas que os espertos não vêem.
- Os espertos estão sempre tão atentos às espertezas alheias que se descontraem diante dos bobos, e estes os vêem como simples pessoas humanas.
- O bobo ganha liberdade e sabedoria para viver.
- O bobo nunca parece ter tido vez. No entanto, muitas vezes o bobo é um Dostoievski.
- Há desvantagem, obviamente: Uma boba, por exemplo, confiou na palavra de um desconhecido para a compra de um ar refrigerado de segunda mão: ele disse que o aparelho era novo, praticamente sem uso porque se mudara para a Gávea onde é fresco. Vai a boba e compra o aparelho sem vê-lo sequer. Resultado: não funciona. Chamado um técnico, a opinião deste era a de que o aparelho estava tão estragado que o conserto seria caríssimo: mais valia comprar outro.
-Mas, em contrapartida, a vantagem de ser bobo é ter boa fé, não desconfiar, e portanto estar tranqüilo. Enquanto o esperto não dorme à noite com medo de ser ludibriado.
- O esperto vence com úlcera no estômago. O bobo nem nota que venceu.
- Aviso: não confundir bobos com burros.
- Desvantagem: pode receber uma punhalada de quem menos espera. É uma das tristezas que o bobo não prevê. César terminou dizendo a frase célebre: “Até tu, Brutus?"
- Bobo não reclama. Em compensação, como exclama!
- Os bobos, com suas palhaçadas, devem estar todos no céu. Se Cristo tivesse sido esperto não teria morrido na cruz.
- O bobo é sempre tão simpático que há espertos que se fazem passar por bobos.
- Ser bobo é uma criatividade e, como toda criação, é difícil. Por isso é que os espertos não conseguem passar por bobos.
- Os espertos ganham dos outros. Em compensação os bobos ganham vida.
- Bem-aventurados os bobos porque sabem sem que ninguém desconfie. Aliás não se importam que saibam que eles sabem.
- Há lugares que facilitam mais as pessoas serem bobas (não confundir bobo com burro, como tolo, como fútil). Minas Gerais, por exemplo, facilita o ser bobo.
- Ah, quantos perdem por não nascer em Minas!
- Bobo é Chagall, que põe vaca no espaço, voando por cima das casas.
- É quase impossível evitar o excesso de amor que um bobo provoca. É que só o bobo é capaz de excesso de amor. E só o amor faz o bobo.

segunda-feira, 14 de fevereiro de 2011

domingo, 13 de fevereiro de 2011

A invenção do amor

" Em todas as esquinas da cidade
nas paredes dos bares à porta dos edifícios públicos nas janelas dos autocarros
mesmo naquele muro arruinado por entre anúncios de aparelhos de rádio e detergentes
na vitrine da pequena loja onde não entra ninguém
no átrio da estação de caminhos de ferro que foi o lar da nossa esperança de fuga
um cartaz denuncia o nosso amor

Em letras enormes do tamanho
do medo da solidão da angústia
um cartaz denuncia que um homem e uma mulher
se encontraram num bar de hotel
numa tarde de chuva
entre zunidos de conversa
e inventaram o amor com caracter de urgência
deixando cair dos ombros o fardo incómodo da monotonia quotidiana

Um homem e uma mulher que tinham olhos e coração e fome de ternura
e souberam entender-se sem palavras inúteis
Apenas o silêncio A descoberta A estranheza
de um sorriso natural e inesperado

Não saíram de mãos dadas para a humidade diurna
Despediram-se e cada um tomou um rumo diferente
embora subterraneamente unidos pela invenção conjunta
de um amor subitamente imperativo (...)"
Daniel Filipe.

Nortada...

O dia amanheceu encoberto e a planície assemelha-se vagamente ao palco da Nortada de Olga Roriz. Uma criadora de primeira água que rescreve a memória, com o corpo, recuperando paraísos perdidos.

Sucedem-se imagens quase fotográficas , como se fossemos convidados a ler a memória desse lugar imaginário, através dos olhos de uma criança: jantares em silêncio apenas entrecortados pelo tocar dos talheres nas loiças; a presença constante dos pés - da lavagem dos pés – da água que purifica e que às vezes convida à evasão mesmo que a viagem seja num barco de papel num mar de tormentas. Guardo a evasão do mar escutado num búzio, uma praia invernosa encenada com sal , gelo e gaivotas como bibelôs,num quadro de absurdos.

A distribuição milimétrica da seara vai soçobrando sobre os pés de quem dança, de quem brinca, de quem sofre, os pés e os sapatos, metáforas da construção dos caminhos com os quais refazemos permanentemente o círculo imperfeito .

Guardo os rituais da terra,do linho, do vinho e a bebedeira que é a vida, bem como e emoção de escutar a celebração da alegria na toada das rebecas de cabo verde.Guardo o assombro, a ironia, o inexplicável, guardo...

Guardo na memória esses misteriosos seres que caminham sobre engrenagens simples – mesas - que se sucedem invisíveis e que nos guiam o caminho. Talvez cadafalsos. Guardo uma mesa, uma passadeira de numa linha de montagem em torno da qual vamos repetindo e acrescentando os gestos com que se reconstrói permanentemente o quotidiano, até ao último, o mais forte de todos os foguetes desta FESTA que é a vida.

Guardo na memória outros espectáculos e outras emoções as que me fazem sempre ir ao encontro desta criadora.

Guardo e imagino: se a belíssima sessão com que o Pax Júlia nos presenteou ontem à noite, tivesse sido precedida, por uma versão reduzida do espectáculo, comentada pela criadora, dirigida ao público escolar, aos alunos do conservatório, aos idosos da nossa comunidade – que outras tantas leituras, que outras experiências estéticas, cada um deles teria acrescentado nas suas vidas?!...

sábado, 12 de fevereiro de 2011

Escrever é enganar o tempo

- certas coisas não se podem guardar para depois -
Pedi emprestado a Clarice Lispector e a Afonso Romano Santana o título e subtítulo destes dois dedos de conversa em dois mil caracteres.
- Certas coisas não se podem guardar para depois!
Na minha casa sempre escutei esta frase. Sempre a escutei aplicada às pessoas que amava, aos afazeres do dia, aos privilégios e aos deveres.
Hoje, andamos todos a guardar “para depois” mesmo as coisas importantes. Como não temos tempo para fazer tudo o que queremos, viver tudo o que sonhamos, dizer tudo o que sentimos, guardamos para depois.
O furto do nosso tempo - também emocional, também afectivo, também associativo, social - é um dos grandes inventos da sociedade neoliberal .
Começa cada vez mais cedo este furto. Na parentalidade, na escola, no trabalho.
Depois de correr todo o dia atrás do tempo, comemos em frente de um televisor, acompanhados pela intoxicação informativa - onde quase sempre informação não é conhecimento - acompanhados por trabalhadores felizes e consumidores felizes, que bailam por entre quilómetros de enlatados e onde até os velhos são tratados com respeito. Todos são belos, elegantes, espertos e ricos o que, convenhamos, é uma preciosa ajuda para interiorizarmos a ideia de que somos o que temos, o que compramos, o que parecemos, o que consumimos.
Vivemos sem tempo para nos representarmos, para nos imaginarmos.
Crescer sem tempo para o jogo, para o sonho, para não fazer nada que seja imediatamente útil, tempo para o relato onde pela palavra contamos memórias e construímos as ficções que nos permitem construir a identidade e projectar um futuro, é uma realidade na vida das nossas crianças.
Viver sem tempo, desencoraja a participação social, desorganiza a vida afectiva, limita o pensamento divergente fundamental na busca das perguntas importantes. Viver sem tempo serve para quê? Serve a quem?
Poderia arriscar várias respostas, mas já não tenho caracteres.
Não tenho tempo… Fui…!
Pub. no Diário do Alentejo 10 022011

domingo, 6 de fevereiro de 2011

sábado, 5 de fevereiro de 2011

O LARGO

Em frente da minha casa, no limite da aldeia, existe um largo cheio de amoreiras frondosas. O chão de terra batida , cobre-se em cada primavera, primeiro de folhas, depois de frutos negros ou verdes.Confesso que gosto de pegar no meu escadote de cozinha, num pequeno alguidar e assim que elas, as amoras,começam a amadurecer, subo a rua e misturo-me com os gaiatos que trepam para apanhar as folhas para os bichos da seda. É também ali que escrupulosamente, ao sábado de manhã, pára o homem do peixe.
Ouço a buzina ao longe , ainda ele vem na estrada de Peroguarda e já sei que passados uns 15 minutos ele vai parar no Largo.
É também lá que sentado no banco está muitas vezes o senhor António das Dores. Se há pessoas que têm um nome desajustado com a sua personalidade, é o Srº António que tem sempre uma graça, um provérbio, um dizer antigo e aquele trato afável de quem está de bem com a vida.
- Bom dia !
- Mais à noite logo saberemos se foi bom! - diz sorrindo, desconstruindo a formalidade do cumprimento e deixando espaço para mais conversa.
Hoje, enquanto o peixe não chegava, ficamos os dois ali a palrar.O Sol aquecia o banco e a aldeia despertava entorpecida. Entre as conversas sobre as dores nas costas que nos atormentam, das tengarrinhas, dos catacuzes e das acelgas foi desenhando com o cajado, circulos, na terra batida:
- Há duas coisas que todos temos certa na vida: Nascer e morrer. O resto não se sabe- dizia isto tão sereno que por breves momentos tudo parecia estar no seu lugar.

sexta-feira, 21 de janeiro de 2011

Ler devia ser proibido

É muito tarde e o sono não vem.
Talvez seja só cansaço, mau estar ou então, talvez seja da inquietação que me causou o último livro do Afonso Cruz : " A Boneca de Kokoschka".Ler pode tirar-nos o sono.
Diz a abrir: "Existem doenças infames, capazes de fazer do nosso corpo uma gaiola para a alma. Parkinson plus é uma das formas mais perversas de o universo mostrar a sua crueldade medieval. Ou com disse Lao Tsé, o universo trata-nos como cães de palha."
Seguindo a história da voz que vem da terra, do mais fundo de mim , abri o livro e não parei senão quando encontrei a palavra destino.
Ler devia ser proibido... já mo tinham dito...

domingo, 16 de janeiro de 2011

Um segredo ao ouvido ...

Quando eu nasci,
Ficou tudo como estava.

Nem homens cortaram as veias,
Nem o Sol escureceu,
Nem houve Estrelas a mais …
Somente,
Esquecida das dores,
A minha Mãe sorriu e agradeceu.

Quando eu nasci,
Não houve nada de novo
Senão eu.

As nuvens não se espantaram,
Não enlouqueceu ninguém …
P´ra que o dia fosse enorme,
Bastava
Toda a ternura que olhava
Nos olhos de minha Mãe …
( Sebastião da Gama )

segunda-feira, 10 de janeiro de 2011

sexta-feira, 7 de janeiro de 2011

NOSSO COLORIDO MARINHEIRO MALANGATANA

A vida dá-me prendas preciosas.
E uma delas é conhecer pessoas preciosas. Recebi este texto ontem, das mãos de uma dessas pessoas.
Uma Senhora , uma grande Bibliotecária Moçambicana, uma grande funcionária pública! Tive o previlégio de a conhecer através de outra grande técnica da rede de leitura pública portuguesa. ( sobre isso falaremos em breve )

Mulheres com visões realistas da realidade que as rodeias. Nunca reformadas : pois sabem o potencial do pais e o que se tem de caminhar para erradicar as iliteracias - e também engajadas e utópicas, honestas , cúmplices, qualidades que muito aprecio e que as fazem pertencer às pessoas significativas da minha vida. Além de tudo são inteligentes.
Penso que foi uma delas que me tinha enviado há tempos também , a propósito das discussões sobre a isenção na atribuição dos prémio Nobel , um artigo curioso de 1998 do El Pais, que dizia : O século XX deu três génios absolutos, Kafka, Proust e Joyce, que revolucionaram a literatura. Nenhum recebeu esse galardão. Deram-no a Churchill. A partir deste facto, cada ano se estabelece uma aposta: não tanto a que ignoto literato o darão, mas se ele será digno de o lermos. Este ano o Nobel terá tido sorte. Saramago está acima do prémio. É um escritor vertical. Além disso, é sabido que uma pessoa sábia recupera-se de um fracasso e que um idiota nunca se recupera de um êxito. Como Saramago é um sábio, sem dúvida suportará a glória com cepticismo e, depois de agradecer como um cavalheiro português, continuará a escrever obras-primas, a partir da solidão da lava. In El País, 11 de Outubro de 1998, Manuel Vincent

Pois ontem recebo de Maputo esta perola sobre o MALANGATANA.
Obrigada W. a quem estarei sempre grata.

NOSSO COLORIDO MARINHEIRO MALANGATANA

Disseram-me, esta manhã, que tinha chegado um barco grande a Matosinhos. De um porto tão distante que os homens só dele sabem de ouvirem falar.
Veio munido de entorpecentes luzes, lento e majestoso como uma baleia divagando em seus mares. De dentro, tambores e cânticos ecoavam, rufando e seduzindo, enquanto bailarinas líquidas, dançando, se embrulhavam em milhentas mil cores sob os pássaros gentios que as acompanhavam.
Havia sol. Estranharam os contadores, pois que não é costume em tempos de tão rígidos frios serem ali solarengas as madrugadas e que nem pássaros se agitem em tão acordados voos. A nave, continuam eles, era um gigantesco vapor feito de invulgares materiais. Estrelas do mar, búzios, escamas prateadas de peixes, carapaças de caranguejos, conchas de um ouro luzídio e muitas máscaras de variáveis rostos.
Também se viam areias encarnadíssimas de uma fineza só igualável às mais longínquas sedas e madeiras rosa e negra e castanhamente canforizadas e também fortes como o ferro e negras como o bréu. E haviam, estranhamente, musculados negros vestidos de uma roupagem quase nua, carregando consigo enormes lanças e elmos de pele e escudos de enormes e vivas cabeças de leopardos rosnando. Também, contam-se as mulheres elegantíssimas cujos seios eram da mais perfeita e dura redondez e que os seguiam agitadas entre seus gritos comemorativos.
Dizem que Matosinhos terá acordado atónita com tão invulgar espectáculo. Eram as altíssimas labaredas que ondulavam de inúmeras fogueiras crepitando sobre o mar, as estrelas havidas baixas e amarelas como o sol, como as luzes vastas de uma grande cidade, cintilantes e irrequietas, e, sobre elas, crianças rindo-se com papagaios tocando o azul límpido dos céus. Em volta do navio, contam-se incontáveis as almadias com os seus pescadores remando e golfinhos saltando, demorada, lentamente em sua volta e que também emitiam envidraçados sons cristalizados por todos os lados em flâmulas e minúsculas bandeiras coloridas, enquanto do seu casco se estendia, até junto à terra, uma enorme passadeira púrpura ladeada por árvores frutadas e perfumadas. Sobre ela caminhava um homem negro e forte que, em meio a sonoras gargalhadas, falava e cantava, palavras e músicas indizíveis, e dos seus cabelos brancos um extenso e distante algodoal se agitava, e das mãos, enormes montanhas verdes de chá enobrecidas o guardavam e da boca, um grande rio trovejando para as duas gigantescas luas negras dos olhos aluando tudo.
Falam as mais variadas vozes que, depois deste espectáculo, do navio se fez ouvir uma estridente sirene, tão forte, tão aguda, tão capaz de fazer tremer as casas dos homens, os prédios da terra, os campos em volta. Com esse som, os cães ladraram e os relógios pararam e o mar se abriu calmo e sereno para engolir aquela visão fantástica. E o silêncio, então, fez sentir-se como uma cortante e sibilante brisa para que a cidade voltasse a dormir de novo.
Apenas mais tarde se soube, de um país haver percorrido o Mundo para embarcar o seu pintador enfeitiçado da vida, que, agora, naquela enorme nave, voltava para vivê-la na consanguinidade moçambicana das suas telas. Desse homem, nosso colorido marinheiro do mundo e de seu nome MALANGATANA, só mesmo elas, justa e merecidamente, poderão falar.
(Eduardo White 5 de Janeiro de 2011

quinta-feira, 6 de janeiro de 2011

A Arte como reivindicação da nossa identidade no mundo dos Homens

Pensar alto
Sim às marrabentas
às danças rituais
que nas madrugadas
criam o frenesim
quando os tambores e as flautas entram a fanfarrar
fanfarrando até o vermelho da madrugada fazer o solo sangrar
em contraste com o verdurar das canções dos pássaros
sobre o já verduzido manto das mangueiras
dos cajueiros prenhes
para em Dezembro seus rebentos
dançarem como mulheres sensualíssimas
em cada ramo do cajual da minha terra

mas, sim ao orgasmo
das mafurreiras
repletas de chiricos
das rolas ciosas pela simbiose que só a natureza sabe oferecer
mas sim
ao som estridente do kulunguana
das donzelas no zig-zague dos ritos
quando as gazelas tão belas
não suportam mais quarenta graus à sombra dos canhueiros em flor

enquanto as oleiras da aldeia, desta grande aldeia Moçambique
amassam o barro dos rios
para o pote feito ser o depositário
de todo o íntimo desse Povo que se não cala disputando
ecoosamente com os tambores do meu ontem antigo.
(Malangatana: http://kafekultura.blogspot.com/2007/06/valente-malangatana-pintura-poesia.html )