domingo, 20 de fevereiro de 2011

Das Vantagens de Ser Bobo - Clarice Lispector

DAS VANTAGENS DE SER BOBO
Clarice Lispector 1970

-O bobo, por não se ocupar com ambições, tem tempo para ver, ouvir e tocar no mundo.
-O bobo é capaz de ficar sentado quase sem se mexer por duas horas. Se perguntado por que não faz alguma coisa, responde: "Estou fazendo. Estou pensando."
-Ser bobo às vezes oferece um mundo de saída porque os espertos só se lembram de sair por meio da esperteza, e o bobo tem originalidade, espontaneamente lhe vem a idéia.
-O bobo tem oportunidade de ver coisas que os espertos não vêem.
- Os espertos estão sempre tão atentos às espertezas alheias que se descontraem diante dos bobos, e estes os vêem como simples pessoas humanas.
- O bobo ganha liberdade e sabedoria para viver.
- O bobo nunca parece ter tido vez. No entanto, muitas vezes o bobo é um Dostoievski.
- Há desvantagem, obviamente: Uma boba, por exemplo, confiou na palavra de um desconhecido para a compra de um ar refrigerado de segunda mão: ele disse que o aparelho era novo, praticamente sem uso porque se mudara para a Gávea onde é fresco. Vai a boba e compra o aparelho sem vê-lo sequer. Resultado: não funciona. Chamado um técnico, a opinião deste era a de que o aparelho estava tão estragado que o conserto seria caríssimo: mais valia comprar outro.
-Mas, em contrapartida, a vantagem de ser bobo é ter boa fé, não desconfiar, e portanto estar tranqüilo. Enquanto o esperto não dorme à noite com medo de ser ludibriado.
- O esperto vence com úlcera no estômago. O bobo nem nota que venceu.
- Aviso: não confundir bobos com burros.
- Desvantagem: pode receber uma punhalada de quem menos espera. É uma das tristezas que o bobo não prevê. César terminou dizendo a frase célebre: “Até tu, Brutus?"
- Bobo não reclama. Em compensação, como exclama!
- Os bobos, com suas palhaçadas, devem estar todos no céu. Se Cristo tivesse sido esperto não teria morrido na cruz.
- O bobo é sempre tão simpático que há espertos que se fazem passar por bobos.
- Ser bobo é uma criatividade e, como toda criação, é difícil. Por isso é que os espertos não conseguem passar por bobos.
- Os espertos ganham dos outros. Em compensação os bobos ganham vida.
- Bem-aventurados os bobos porque sabem sem que ninguém desconfie. Aliás não se importam que saibam que eles sabem.
- Há lugares que facilitam mais as pessoas serem bobas (não confundir bobo com burro, como tolo, como fútil). Minas Gerais, por exemplo, facilita o ser bobo.
- Ah, quantos perdem por não nascer em Minas!
- Bobo é Chagall, que põe vaca no espaço, voando por cima das casas.
- É quase impossível evitar o excesso de amor que um bobo provoca. É que só o bobo é capaz de excesso de amor. E só o amor faz o bobo.

segunda-feira, 14 de fevereiro de 2011

domingo, 13 de fevereiro de 2011

A invenção do amor

" Em todas as esquinas da cidade
nas paredes dos bares à porta dos edifícios públicos nas janelas dos autocarros
mesmo naquele muro arruinado por entre anúncios de aparelhos de rádio e detergentes
na vitrine da pequena loja onde não entra ninguém
no átrio da estação de caminhos de ferro que foi o lar da nossa esperança de fuga
um cartaz denuncia o nosso amor

Em letras enormes do tamanho
do medo da solidão da angústia
um cartaz denuncia que um homem e uma mulher
se encontraram num bar de hotel
numa tarde de chuva
entre zunidos de conversa
e inventaram o amor com caracter de urgência
deixando cair dos ombros o fardo incómodo da monotonia quotidiana

Um homem e uma mulher que tinham olhos e coração e fome de ternura
e souberam entender-se sem palavras inúteis
Apenas o silêncio A descoberta A estranheza
de um sorriso natural e inesperado

Não saíram de mãos dadas para a humidade diurna
Despediram-se e cada um tomou um rumo diferente
embora subterraneamente unidos pela invenção conjunta
de um amor subitamente imperativo (...)"
Daniel Filipe.

Nortada...

O dia amanheceu encoberto e a planície assemelha-se vagamente ao palco da Nortada de Olga Roriz. Uma criadora de primeira água que rescreve a memória, com o corpo, recuperando paraísos perdidos.

Sucedem-se imagens quase fotográficas , como se fossemos convidados a ler a memória desse lugar imaginário, através dos olhos de uma criança: jantares em silêncio apenas entrecortados pelo tocar dos talheres nas loiças; a presença constante dos pés - da lavagem dos pés – da água que purifica e que às vezes convida à evasão mesmo que a viagem seja num barco de papel num mar de tormentas. Guardo a evasão do mar escutado num búzio, uma praia invernosa encenada com sal , gelo e gaivotas como bibelôs,num quadro de absurdos.

A distribuição milimétrica da seara vai soçobrando sobre os pés de quem dança, de quem brinca, de quem sofre, os pés e os sapatos, metáforas da construção dos caminhos com os quais refazemos permanentemente o círculo imperfeito .

Guardo os rituais da terra,do linho, do vinho e a bebedeira que é a vida, bem como e emoção de escutar a celebração da alegria na toada das rebecas de cabo verde.Guardo o assombro, a ironia, o inexplicável, guardo...

Guardo na memória esses misteriosos seres que caminham sobre engrenagens simples – mesas - que se sucedem invisíveis e que nos guiam o caminho. Talvez cadafalsos. Guardo uma mesa, uma passadeira de numa linha de montagem em torno da qual vamos repetindo e acrescentando os gestos com que se reconstrói permanentemente o quotidiano, até ao último, o mais forte de todos os foguetes desta FESTA que é a vida.

Guardo na memória outros espectáculos e outras emoções as que me fazem sempre ir ao encontro desta criadora.

Guardo e imagino: se a belíssima sessão com que o Pax Júlia nos presenteou ontem à noite, tivesse sido precedida, por uma versão reduzida do espectáculo, comentada pela criadora, dirigida ao público escolar, aos alunos do conservatório, aos idosos da nossa comunidade – que outras tantas leituras, que outras experiências estéticas, cada um deles teria acrescentado nas suas vidas?!...

sábado, 12 de fevereiro de 2011

Escrever é enganar o tempo

- certas coisas não se podem guardar para depois -
Pedi emprestado a Clarice Lispector e a Afonso Romano Santana o título e subtítulo destes dois dedos de conversa em dois mil caracteres.
- Certas coisas não se podem guardar para depois!
Na minha casa sempre escutei esta frase. Sempre a escutei aplicada às pessoas que amava, aos afazeres do dia, aos privilégios e aos deveres.
Hoje, andamos todos a guardar “para depois” mesmo as coisas importantes. Como não temos tempo para fazer tudo o que queremos, viver tudo o que sonhamos, dizer tudo o que sentimos, guardamos para depois.
O furto do nosso tempo - também emocional, também afectivo, também associativo, social - é um dos grandes inventos da sociedade neoliberal .
Começa cada vez mais cedo este furto. Na parentalidade, na escola, no trabalho.
Depois de correr todo o dia atrás do tempo, comemos em frente de um televisor, acompanhados pela intoxicação informativa - onde quase sempre informação não é conhecimento - acompanhados por trabalhadores felizes e consumidores felizes, que bailam por entre quilómetros de enlatados e onde até os velhos são tratados com respeito. Todos são belos, elegantes, espertos e ricos o que, convenhamos, é uma preciosa ajuda para interiorizarmos a ideia de que somos o que temos, o que compramos, o que parecemos, o que consumimos.
Vivemos sem tempo para nos representarmos, para nos imaginarmos.
Crescer sem tempo para o jogo, para o sonho, para não fazer nada que seja imediatamente útil, tempo para o relato onde pela palavra contamos memórias e construímos as ficções que nos permitem construir a identidade e projectar um futuro, é uma realidade na vida das nossas crianças.
Viver sem tempo, desencoraja a participação social, desorganiza a vida afectiva, limita o pensamento divergente fundamental na busca das perguntas importantes. Viver sem tempo serve para quê? Serve a quem?
Poderia arriscar várias respostas, mas já não tenho caracteres.
Não tenho tempo… Fui…!
Pub. no Diário do Alentejo 10 022011

domingo, 6 de fevereiro de 2011

sábado, 5 de fevereiro de 2011

O LARGO

Em frente da minha casa, no limite da aldeia, existe um largo cheio de amoreiras frondosas. O chão de terra batida , cobre-se em cada primavera, primeiro de folhas, depois de frutos negros ou verdes.Confesso que gosto de pegar no meu escadote de cozinha, num pequeno alguidar e assim que elas, as amoras,começam a amadurecer, subo a rua e misturo-me com os gaiatos que trepam para apanhar as folhas para os bichos da seda. É também ali que escrupulosamente, ao sábado de manhã, pára o homem do peixe.
Ouço a buzina ao longe , ainda ele vem na estrada de Peroguarda e já sei que passados uns 15 minutos ele vai parar no Largo.
É também lá que sentado no banco está muitas vezes o senhor António das Dores. Se há pessoas que têm um nome desajustado com a sua personalidade, é o Srº António que tem sempre uma graça, um provérbio, um dizer antigo e aquele trato afável de quem está de bem com a vida.
- Bom dia !
- Mais à noite logo saberemos se foi bom! - diz sorrindo, desconstruindo a formalidade do cumprimento e deixando espaço para mais conversa.
Hoje, enquanto o peixe não chegava, ficamos os dois ali a palrar.O Sol aquecia o banco e a aldeia despertava entorpecida. Entre as conversas sobre as dores nas costas que nos atormentam, das tengarrinhas, dos catacuzes e das acelgas foi desenhando com o cajado, circulos, na terra batida:
- Há duas coisas que todos temos certa na vida: Nascer e morrer. O resto não se sabe- dizia isto tão sereno que por breves momentos tudo parecia estar no seu lugar.